Coordenadora do Copevid fala em ‘transformação’ após a Lei Maria da Penha

A promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) e coordenadora Nacional da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), Valéria Diez Scarance Fernandes, esteve na VIII Capacitação na Lei Maria da Penha, evento realizado pelo Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES), por meio do Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Nevid) abordando o tema “Feminicído e Violência contra Mulheres”.
 
1 – A senhora coordena a comissão permanente de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Quais são as principais ações que destacaria como mais urgentes e necessárias para coibir esse tipo de crime no país?
Há um conjunto de ações necessárias para se transformar essa realidade que tem matado tantas mulheres no Brasil que é o quinto país do mundo em número de mortes de mulheres. Aqui se mata mais 48 vezes do que o Reino Unido, por exemplo. Aqui se mata mais do que todos os países de origem árabe. E por que as mortes persistem apesar de termos legislações consideradas tão avançadas como a Lei Maria da Penha que é considerada a terceira melhor lei do mundo? Porque há necessidade, primeiro, de se mudar a forma de pensar. Então, uma das estratégias é a educação, criando mecanismos para alterar o machismo, o sexicismo, a discriminação. E também a capacitação de autoridades e de pessoas que trabalham no enfrentamento à violência contra as mulheres. Essa capacitação é muito importante. Trabalhar com mulheres não é apenas estudar a Lei Maria da Penha. É saber entender porque a mulher se retrata, saber entender o silêncio, saber reconhecer o risco, mesmo quando a mulher diz que quer permanecer na relação. Há também a avaliação de risco, a criação de programas de fiscalização de medidas protetivas, a estratégia de se desvincular as medidas de proteção dos inquéritos policiais. É uma tese nova, mas que pode ser efetiva: proteger a mulher ainda que não exista uma investigação. Desenvolver programas para agressores, com o objetivo de mudança de comportamento. Desenvolver programas de atendimento às vítimas, de proteção integral a elas e integrar todos os entes que trabalham no sistema de Justiça.
 
2 – São muitos os casos de mulheres que denunciaram os maridos e morreram porque não tiveram essas medidas protetivas. Como a mulher pode garantir que receberá essa proteção depois da denúncia?
É imprescindível sempre que a mulher procure ajuda. A relação de violência que acontece no contexto afetivo é muito peculiar, porque o homem que pratica a violência não é agressivo e violento o tempo inteiro. Há uma alternância entre o comportamento violento e o comportamento amoroso, entre a agressividade e o perdão. Muitas mulheres desistem quando o homem muda o comportamento e isso acontece na maioria das relações, que é a chamada a fase da “lua de mel”. Pertence ao ciclo da violência estudado na década de 70 por uma americana chamada Lenore Walker. O comportamento padrão de um homem violento é primeiro agredir e depois mudar temporariamente e as mulheres desistem muitas vezes. Quando fazem isso ficam sujeitas à própria sorte. Havendo violência, a mulher deve pedir medidas protetivas e, na hipótese de novo ataque, tem que acionar a polícia, combinar sinais de alerta com vizinhos, palavras de segurança com pessoas conhecidas, ter sempre um plano de segurança que pode ser desenvolvido junto à rede de serviços. Se houve um ataque sério, a fuga tem que ser planejada. Ninguém sabe por onde e como fugir no momento do medo. Então, uma vítima que sofreu um ataque com arma de fogo ou uma faca, ou que tem medo, deve saber se acontecer de novo para onde vai, quem procurar, onde estão suas coisas e o que fazer. Esse plano de segurança é uma boa estratégia. Agora, nunca se calar, nunca desistir, porque as mulheres que morrem são as que desistem. Quando elas desistem, o autor se apodera, crê que agiu corretamente e que a mulher está novamente em suas mãos.
 
3 – Na palestra ao MPES, a senhora aborda o tema “Feminicídio e Violência Contra Mulheres”.
Poderia destacar alguns pontos?
Inicialmente, abordo o porquê da necessidade de leis específicas para as mulheres. Por que a necessidade de uma Lei Maria da Penha e do Feminicídio se a Constituição assegura a igualdade de homens e mulheres perante a lei? Começo com uma abordagem histórica, explicando como a lei e a sociedade tratam a mulher do Descobrimento do Brasil até hoje, o que é gênero, as formas de violência e a Lei de Feminicídio. Encerro dizendo: o que podemos fazer para ajudar?
 
4 – De que forma a Lei Maria da Penha tem contribuído para a redução da violência contra a mulher?
Progredimos muito. Vivemos em outra sociedade e outro mundo. Uma transformação muito relevante foi a conscientização. Hoje, as pessoas são capazes de se indignar, de identificar o que é discriminação, o que é desvalia da mulher e são capazes de reagir. Há 20 anos, se falassem que uma mulher tinha de ser recatada não haveria nenhuma crítica. Hoje, se entende que ser recatada ou não é uma opção da mulher, não é uma obrigação. Essa reação que houve mostra a conscientização com relação aos direitos da mulher. Houve um descortinamento quanto ao que é ser mulher e a violência.

5 – O que é necessário para que se aumente a eficácia desse instrumento?
Muitas coisas. Primeiro, maior conhecimento quanto ao conteúdo da lei. A sociedade em peso sabe da existência da Lei Maria da Penha, mas desconhece o conteúdo, não sabe da proteção prevista na lei.
Segundo, uma proteção mais efetiva, mais rápida, imediata. Terceiro, a capacitação de todos aqueles que trabalham com enfrentamento à violência contra a mulher, desde os policiais militares, civis, promotores, juízes e agentes. Para enfrentar a violência contra a mulher, é preciso enxergar diferente. É preciso saber identificar o que é risco, o que é perigo, e acolher com um olhar diferenciado. A revitimização da violência contra a mulher é diferente de outras infrações penais. Às vezes, um olhar de desdém pode fazer com que a mulher retorne a uma situação de perigo e que pouco tempo depois seja assassinada.

6 – A senhora avalia que ainda falta maior articulação entre os diversos órgãos de proteção à mulher?
Sob o aspecto da integração, depende do local, cada Estado que está em estágios diferentes. Mas houve, no geral, uma maior integração. Tem havido uma preocupação e um empenho por parte desses entes. Por exemplo, na campanha “Compromisso e Atitude”, que é ligada à Secretaria de Política das Mulheres da Presidência da República, participam representantes do Ministério Público, Poder Judiciário, Câmara, Senado. Lá se definem as prioridades para o país e isso é muito relevante.
São todos os entes conversando sobre o que é prioritário e os resultados são realmente estratégicos. Por exemplo, numa das reuniões foi decidido que, dentro dos projetos de Lei, um dos mais importantes é aquele que cria um crime específico para o descumprimento de medidas protetivas. Então, todos os entes têm empenhado esforços para que seja aprovado esse projeto de lei.
 

7 – A senhora acredita que todos esses entes têm a noção de todo o processo de pressão psicológica pelo qual as mulheres passam numa situação de violência numa relação amorosa?
O nosso país tem mais de cinco séculos. A Lei Maria da Penha vai completar uma década. É uma transformação relevante, efetiva e rápida para uma década. Mas que envolve padrões e conceitos que já estão naturalizados e incorporadas há séculos. A ideia de que a mulher deve obediência e precisa do aval do marido ainda está incorporada, que deve ser muda, recatada, destinada ao casamento, de que a mulher não pode trabalhar tanto, porque isso prejudica a família são ideias que ainda precisam ser desconstruídas, questionadas. Todas as pessoas que ocupam a nossa sociedade são influenciadas e isso inclui as autoridades públicas. Há um processo de transformação muito relevante, mas é gradativo. As autoridades que têm frequentado programas de formação, os novos promotores de Justiça, os novos juízes, novos defensores, aqueles que trabalham com o feminicídio têm isso no olhar, mas para atingir a todos ainda há um longo caminho.